segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Astrônomo jesuíta foi perseguido na Amazônia no século 18; livro conta bastidores


(Folha) Em 3 de setembro de 1759, seguindo os conselhos de seu todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (o marquês de Pombal), o rei de Portugal, dom José 1º, assinou uma lei que determinava que os jesuítas fossem "expulsos de todos os Meus Reinos e Domínios". A notícia demorou mais de dez meses para atravessar o Atlântico e chegar a Ibirajuba, perto de Belém. Era o fim da linha para Ignác Szentmártonyi, astrônomo, filho de pai húngaro e mãe croata, sacerdote jesuíta.

Preso por ordem real e remetido para Lisboa poucos meses depois, Szentmártonyi passaria 17 anos nas piores masmorras de Portugal antes que a perseguição à Companhia de Jesus finalmente arrefecesse --destino um bocado improvável para quem tinha chegado ao Pará como membro de uma missão científica considerada estratégica pela própria Coroa.

Szentmártonyi, cujo nome impronunciável os portugueses e paraenses transformaram em "Sanmartoni", juntamente com um colega bolonhês, o também astrônomo e padre Giovanni Angelo Brunelli, vieram parar na Amazônia como parte do esforço de determinar com precisão as fronteiras do império colonial português.

Afinal, em 1750, os soberanos da Espanha e de Portugal tinham redefinido os limites de seus domínios por meio do Tratado de Madri, que reconhecia como fato consumado o grande avanço para o oeste do território português, para além da linha do antigo Tratado de Tordesilhas.

Mas, para saber onde ficavam as novas fronteiras, era necessário estabelecer com precisão a latitude e a longitude das regiões mais remotas dos dois impérios, o que explica a convocação da dupla de especialistas estrangeiros.

O livro "Astronomia na Amazônia no século XVIII", de Carlos Francisco Moura, usa documentos pouco conhecidos para reconstruir esse capítulo obscuro e fascinante da história da ciência no Brasil.

A fluidez narrativa não é o forte da obra --Moura deixa claro que seu público-alvo é acadêmico. Mesmo assim, o livro traça um retrato bastante claro da interação entre astronomia e geopolítica
na Amazônia colonial.

Não é de estranhar que a aventura dos astrônomos tenha acontecido sob os auspícios de Carvalho e Melo (ainda longe de receber o título de marquês quando a missão científica partiu da foz do Tejo, em junho de 1753). O futuro Pombal estava determinado a usar os avanços da ciência setecentista para fortalecer a posição de Portugal no mundo.

Além do mais, seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, tinha sido nomeado, poucos anos antes, governador do Grão-Pará e Maranhão (quase toda a Amazônia Legal atual), o que, claro, facilitava coordenar as expedições para o interior.

Contratempos
Usando os métodos mais empregados para calcular coordenadas geográficas no século 18, que envolviam observações de eclipses da Lua e dos grandes satélites de Júpiter descobertos por Galileu, a equipe liderada por Szentmártonyi e Brunelli determinou a latitude e a longitude de Belém, de Macapá e de Mariuá (hoje Barcelos, no Amazonas), além de mapear boa parte do percurso que fizeram subindo os rios Amazonas e Negro.

O astrônomo jesuíta também foi um dos primeiros a usar um termômetro de Fahrenheit para fazer medições de temperatura na Amazônia, com dados que podem ser interessantes para entender como os últimos séculos de mudança climática provocada pelo homem estão afetando a região, afirma Moura.

Além da saga dos dois astrônomos --Brunelli, que não era jesuíta, virou professor de matemática do Real Colégio dos Nobres e da Academia Real de Marinha ao voltar a Portugal--, o livro mostra a dor de cabeça que era tentar fazer ciência num fim de mundo como a Amazônia colonial.

A comitiva dos pesquisadores precisou esperar meses para que seus instrumentos (telescópios, lunetas, sextantes) fizessem a travessia marítima, só para descobrir que boa parte deles tinha se estragado na jornada, o que motivou mais atrasos antes que novos aparelhos chegassem da Europa.

Para poder realizar sua missão a contento, a dupla e seus colaboradores precisavam também importar uma biblioteca científica inteira. O conjunto incluía tanto obras de figurões da física e da astronomia, como Newton e Cassini, quanto o obscuro "Observaciones Astronomicas, y Physicas em los Reinos del Perú", de Dom Jorge Juan e Dom Antonio de Ulloa.

Em meio às peripécias para conseguir aparelhos e livros, transparece o lado mais sinistro do "ilustrado" governo de Pombal. Não fica muito claro o porquê, mas o ministro português parece determinado a incriminar Szentmártonyi.

Mendonça Furtado, obediente, responde carta do irmão poderoso dizendo: "E pelo que toca a este padre, me haverei com ele na forma como V. Exa. me avisa, e como há estas provas contra ele, remeto a V. Exa. uma carta que aqui chegou depois de sua partida deste arraial". Para o império português, pelo visto, a astronomia só valia como serva do poder.
LIVRO - "Astronomia na Amazônia no século XVIII"de Carlos Francisco Moura
Real Gabinete Português de Leitura, 168 págs., R$ 35,00

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