quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Da reverência dos céus a Galileu, Giordano Bruno e Extraterrestres

Semelhante à nossa Via Láctea, a galáxia espiral NGC 3370 está a cerca de 100 milhões de anos-luz de distância, na direcção da constelação de Leão.Crédito: NASA, ESA, Hubble Heritage (STScI/AURA)




(Astronomia On Line - Portugal) O nosso Sol é apenas um ponto pequeno de luz no rodopio dos sóis que formam o disco da Via Láctea. As centenas de milhares de milhões de estrelas estão espalhadas a distâncias tão grandes, que uma nave a viajar à velocidade da luz demoraria 100.000 anos a percorrer a Galáxia de uma ponta à outra. Esta espiral estrelada gira em torno de um buraco negro massivo, um ponto de densidade infinita com uma gravidade tão forte que nem a luz lhe escapa.

A estrutura e escala da nossa Galáxia são assombrosas. Mas é apenas uma entre centenas de milhares de milhões de galáxias no Universo.

É uma pequena maravilha, por isso, que a contemplação do cosmos possa evocar as mesmas emoções que a admiração e reverência religiosas. De acordo com o Padre Paul Pavel Gabor, um astrónomo do Observatório do Vaticano, esta experiência não é sempre positiva. Tal como há quem sinta medo ao contemplar Deus, existem aqueles que, quando confrontados com as proporções astronómicas do céu, similarmente passam por tal sentimento avassalador.

"Sentem que é inspirador, mas num mau sentido," nota Gabor. "Quando mostro às pessoas fotografias do Grupo Local de galáxias, apenas para lhes dar um sentido de escala das coisas, a reacção é muitas vezes de, 'Uau. Sou completamente insignificante. Sinto-me desconfortável acerca disto do Universo. '"

Do ponto de vista de Gabor, uma maneira de enfrentar este sentimento de desespero é através da fé num poder maior, é acreditar num Deus que criou o Universo como um gesto de amor.

"A fé diz-nos que não devemos temer o Universo, é algo que nos foi oferecido como dádiva por alguém que queria dar algo bom, algo bonito," afirma. "Por isso ao ver estas imagens de astronomia, podemos sentir que o 'copo está meio-cheio', e acreditar que nos foi dado algo realmente incrível, ou sentir o 'copo meio-vazio', que isto tudo é assustador e escondermo-nos na nossa pequena toca."

Quer sinta medo ou espanto pelo esplendor do Universo, não há dúvida acerca da sua natureza elementar: é a fonte de todos nós. Tal como Carl Sagan afirmou, "Somos todos 'poeira das estrelas'". Os elementos químicos que formam o espaço da criação também formam a nossa Galáxia, o nosso planeta e até mesmo as células dos nossos corpos. Ao explorar o cosmos aproximamo-nos, por isso, de um "grande criador."
Representação da evolução do Universo ao longo de 13,7 mil milhões de anos. À esquerda estão os momentos mais antigos que conseguimos estudar, quando um período de "inflação" produziu um crescimento exponencial e súbito do Universo. (o tamanho é descrito pelo crescimento vertical da grelha neste gráfico.) Durante os milhares de milhões de anos seguintes, a expansão do Universo gradualmente diminui de velocidade à medida que a matéria no Universo era atraída para si própria pela gravidade. Mais recentemente, a expansão começou a acelerar novamente à medida que os efeitos repulsivos da energia escura começaram a dominar a expansão do Universo.Crédito: NASA / Equipa científica da WMAP


O termo "cosmos" significa "mundo ordenado". Durante a maioria da história da Humanidade, os humanos acreditaram que Deus tinha criado o universo ordenado a partir do caos. Esta convicção é ainda partilhada pela maioria das pessoas hoje em dia, mas os aspectos dessa fé mudaram à medida que o nosso conhecimento científico do cosmos crescia. Por exemplo, o colega de Gabor, Frade Guy Consolmagno, também astrónomo do Vaticano, afirma que embora muitas pessoas acreditem que Deus criou o Universo, pensam que a sua enormidade torna impossível que Deus tome alguma nota pessoal em relação a nós. Este grão de poeira a que chamamos Terra é insignificantemente minúsculo em comparação com a mais pequena das estrelas e cada das nossas vidas dura um breve momento cósmico.

"Há quem recuse acreditar porque ainda não compreenderam a natureza de Deus, um Deus mais 'além' do que é possível," afirma Consolmagno.

Esta noção filosófica de um Deus para quem todas as coisas são possíveis, e que está para lá da capacidade humana do conhecimento, encontra um eco na ainda misteriosa natureza do Universo. Por exemplo, à maioria do Universo são actualmente atribuídas as categorias obscuras "energia escura" e "matéria escura". Num artigo da revista Scientific American, o astrofísico David Cline nota que estes termos são na realidade apenas expressões da nossa ignorância.

Outra área da ignorância científica é o que havia antes do Big Bang. O que é que aconteceu, se é que aconteceu alguma coisa, antes do Universo começar a sua expansão? O padre Católico Georges Lemaître propôs originalmente a ideia de um Universo em expansão a partir de um ponto inicial (que chamou de 'átomo primitivo'), e a Igreja Católica suportou a teoria do Big Bang - pelo menos segundo outras características e com outro nome - mesmo antes da maioria dos cosmólogos. Este "dia sem ontem" foi visto como consistente com a criação "ex nihilo" (a partir do nada) descrita no Livro do Génesis.

Segundo uma notícia recente da agência Reuters, o Papa Bento XVI afirmou que "a mente de Deus esteve por trás de teorias científicas complexas como o Big Bang." O Papa não citou o Big Bang especificamente, mas falou em termos mais gerais acerca da criação do Universo: "O universo não é o resultado do caso, como alguns querem fazer-nos crer. Contemplando-o, somos convidados a ler nele algo de profundo: a sabedoria do Criador, a fantasia inesgotável de Deus, o seu amor infinito por nós. Não deveríamos deixar limitar a nossa mente por teorias que chegam apenas a um certo ponto e que - se olharmos bem - não estão de modo algum em concorrência com a fé, mas não conseguem explicar o sentido derradeiro da realidade. Na beleza do mundo, no seu mistério, na sua grandeza e na sua racionalidade não podemos deixar de ler a racionalidade eterna, e não podemos deixar de nos fazer guiar por ela até ao único Deus, Criador do céu e da terra."

Num outro texto lido numa outra altura, o Papa Bento XVI disse que um modo de melhor tentarmos compreender o Universo é através da matemática: "[Galileu] estava convencido que Deus nos tinha dado dois livros, o livro das Sagradas Escrituras e o livro da Natureza. E a linguagem da Natureza -- era esta a sua convicção -- era a matemática, portanto o idioma do Criador. O surpreendente é que esta invenção do intelecto humano é a verdadeira chave para compreender a Natureza, que a Natureza está deveras estruturada matematicamente, e que a nossa matemática, inventada pelo nosso espírito, é realmente o instrumento para trabalhar com a Natureza, para a pôr ao nosso serviço, para a usarmos através da tecnologia."

Consolmagno realça que há quem pergunte se a matemática foi inventada pelo Homem para descrever a Natureza, ou se apenas descobrimos as propriedades matemáticas que foram incorporadas na Natureza por um poder maior.

"Talvez seja um pouco de ambos," afirma. "O que me surpreende sempre, para além do Universo ser matemático, é que o Universo faz sentido. A sua matemática é gloriosa. Quando um estudante compreende o que as equações de Maxwell dizem, há um salto de alegria que é tão maravilhoso como olhar o pôr-do-Sol que as equações de Maxwell explicam. Porque funcionam de todo é algo que nenhum filósofo foi capaz de responder."
Galileu perante o painel de juizes, pintado no século XIX.


Um dos exemplos mais famosos do conflito entre religião e ciência é o julgamento de Galileu Galilei. Galileu defendia a visão de Copérnico de que a Terra orbitava o Sol, uma teoria "heliocêntrica" que a Igreja declarou contrária às Escrituras. Galileu foi avisado para abandonar o seu suporte a esta teoria e ao invés abraçar a noção "geocêntrica" tradicional de que a Terra era um ponto imóvel, em torno do qual o Universo rodava.

Em vez disso, Galileu publicou em 1632 "Diálogo Relativo aos Dois Grandes Sistemas dos Mundos". O livro estava estruturado como um diálogo entre Salviati, um filósofo heliocêntrico, Simplicio, um filósofo geocêntrico, e Sagredo, um leigo neutro. O Papa Urbano VIII tinha na realidade dado permissão para escrever o livro, com a condição de não promover um ponto de vista sobre o outro. No entanto, Salviati argumentava fortemente as crenças de Galileu, enquanto Simplicio era normalmente ridicularizado como um tolo.

Uma visão regularmente repetida acerca do furor que seguiu a publicação do livro de Galileu é a de que o Papa foi insultado ao ter as suas palavras expressadas por Simplicio. Não só este personagem foi escrito para parecer ridículo, mas o próprio nome tinha provavelmente o duplo significado de "mente simples" (simplice em italiano). No entanto, Consolmagno refuta esta análise.

"Em primeiro lugar, 'Simplicio' era um nome bem-estabelecido em discursos filosóficos, não algo inventado por Galileu para representar uma pessoa que era capaz de ver através da neblina criada pelos filósofos mais inteligentes e eruditos que inventavam teorias elaboradas e perdiam capacidade de ver verdades óbvias mais simples, tal como a criança inocente que reconhece que o rei vai nu," afirma Consolmagno. "Neste contexto, pode ser visto como um elogio. Em segundo lugar, este tipo de trocadilhos é bastante comum em várias línguas mas a minha impressão é que não é tão frequente, ou do mesmo modo, em italiano; não sei se alguém nessa altura o teria interpretado desse modo. E finalmente, o livro foi originalmente aprovado pelos censores do Papa antes de ser publicado; se ele se sentisse insultado pelo nome, teria reparado muito antes de ser impresso."

Mesmo assim, as consequências políticas eventualmente levaram a Igreja a retirar a sua permissão para publicar o livro. Galileu enfrentou um painel especialmente reunido de dez juízes, que o consideraram culpado de suspeita de heresia. Ao abjurar - afirmando que nunca acreditou no ponto de visto heliocêntrico expresso no livro - a pena de Galileu foi reduzida a prisão domiciliária.

"Ele serviu (a sua pena) ao início como convidado de honra do Bispo de Siena antes de regressar à sua casa de campo, onde permaneceu por uma década, teve visitas regulares e escreveu outro livro," afirma Consolmango. "Não quero lavar os erros que a Igreja cometeu no caso de Galileu, mas... Certamente não era uma simples reacção emocional contra a ciência."

Consolmagno afirma que para realmente compreender o que se passou, seria preciso ter em conta o pensamento filosófico da altura e os eventos que tinham lugar tanto na Igreja como na sociedade em geral. Este contexto pode ser estudado nos documentos originais do julgamento, que foram já traduzidos para várias línguas.

"Condenaram Galileu numa tecnicidade, e era culpado dessa tecnicidade; mas o porquê de terem decidido persegui-lo, dessa maneira, nessa altura, permanece uma questão em aberto," afirma Consolmagno. "Podemos concluir, actualmente, que nunca deveria sequer ter sido julgado."

Em 1992, o Papa João Paulo II emitiu uma declaração reconhecendo os erros no julgamento de Galileu. Mas nada se disse até agora acerca de Giordano Bruno, que a Igreja condenou à fogueira em 1600.

Bruno não só defendia a visão heliocêntrica, também afirmava que existiam mundos múltiplos para lá da Terra, cada orbitando a sua própria estrela. Os astrónomos do Vaticano afirmam que a sentença de Giordano Bruno não está relacionada com estas suas noções.

"Dizia-se na altura, em tom jocoso, que se ele morreu na fogueira, foi por plágio," afirma Consolmagno. "Nicolau de Cusa publicou estas mesmas ideias 200 anos antes, e era Cardeal." O livro de Nicolau de Cusa, "Da Douta Ignorância," no qual discutia a possibilidade de mundos múltiplos, foi publicado em 1440. Também escreveu que poderiam existir extraterrestres na Lua e no Sol. "Tornou-se Cardeal em 1448, por isso é óbvio que isto não prejudicou a sua carreira," nota o Padre Paul Pavel Gabor.

Consolmagno diz que a razão mais provável para a hostilidade da Igreja é que Giordano Bruno negou a divindade de Cristo, bem como outras doutrinas fundamentais da Cristandade.
Monumento em honra a Giordano Bruno, colocado no local da sua execução, em Campo de' Fiori em Roma.Crédito: Wikipedia


"Eu penso que o problema real com Bruno era que tinha sido acusado de ser um espião inglês," acrescenta Gabor. Ele acrescenta que Bruno tinha sido preso em vários locais da Europa antes de aterrar na prisão de Veneza, que depois levou à sua morte em Roma. Gabor diz que os documentos do julgamento acerca dos seus últimos sete anos de vida já não existem porque Napoleão saqueou o Vaticano por papel. "Quem continua a escrever acerca do seu julgamento como se soubesse o que se passou está apenas a fantasiar," afirma Gabor.

Tanto Consolmagno como Gabor realçam a noção que extraterrestres e outros mundos não são ideias novas para a Igreja, e não desafiam ou ameaçam as crenças centrais da sua religião. O Vaticano até patrocinou um workshop de astrobiologia em 2009. Segundo Consolmagno, a Igreja fê-lo para criar um fórum no qual os cientistas de topo neste campo discutiam ideias. Afirmam que não houve qualquer discussão religiosa neste workshop; em vez disso, o foco foi puramente científico e sobre o ramo da astrobiologia. O cruzamento filosófico entre religião e ciência foi apenas discutido informalmente, durante pausas para café e outras reuniões sociais.

Há centenas de anos que os filósofos debatem as implicações de vida extraterrestre, se não mais. Mas até que seja descoberta, afirma Consolmagno, estas questões permanecem no reino da ficção científica, em vez de religião ou ciência. "Penso que é um papel muito importante que a ficção científica desempenha, porque neste ponto estamos apenas a brincar com ideias," afirma Consolmagno. "Estamos apenas a explorar o espaço onde as ideias podem estar. Não sabemos - não temos as respostas. É por isso que é tão divertido!"

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