quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A Igreja estava certa em rejeitar Copérnico?

(Darwin e Deus - Folha) Não dá para escapar do peso histórico que as brigas entre a Igreja Católica e alguns dos mais importantes astrônomos do Renascimento tiveram sobre a relação entre ciência e religião nos últimos séculos. Por mais que esse tema tenha deixado de ser fonte de conflito há muito tempo, o trauma relacionado à execução de Giordano Bruno (1548-1600) e à prisão domiciliar de Galileu Galilei (1564-1642) por ordem das autoridades católicas virou, na imaginação popular, o grande modelo do que acontece quando a fé tenta se sobrepor à razão. Por isso mesmo, pode soar impensável a seguinte afirmação: na época, também havia boas razões científicas para duvidar que a Terra girava em torno do Sol, o chamado heliocentrismo, proposto pelo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543).

(OK, chega de datas de nascimento e morte por enquanto, eu prometo.)

Um resumo interessantíssimo e muito claro desses argumentos contra Copérnico, e de como, na verdade, eles demoraram para ser derrubados cientificamente, estão em artigo na edição deste mês da revista “Scientific American” (eis o link, embora seja preciso pagar pelo acesso ao artigo completo).

Meu plano a seguir a resumir esses argumentos, a partir do que dizem os pesquisadores Dennis Danielson e Christopher Graney. Mas, já que o tema é terreno fértil para interpretações maliciosas de todo o tipo, permita o gentil leitor que eu deixe claro o que não estou querendo dizer com esse texto (só por segurança):

1)É lógico que eu não estou dizendo que as autoridades religiosas da Renascença estavam certas em fazer bullying ou mandar para a fogueira quem defendia o ponto de vista de Copérnico. Só estou tentando levar em conta que, além do contexto de manutenção autoritária de um certo tipo de interpretação das Escrituras e do Cosmos, havia também argumentos científicos de um lado e de outro, que foram levados a sério na época por gente que não tinha ligação nenhuma com a Inquisição.

2)E, claro, é lógico que esse negócio não foi só um debate científico bem-educado. A discussão era muito mais ampla, desde questões de poder (ver acima) até, no caso da única execução de um cientista por causa disso, a de Giordano Bruno, porque ele aproveitou para questionar diretamente dogmas religiosos que não tinham nada a ver com o heliocentrismo em si. Apesar do sofrimento pelo qual passou, Galileu continuou sendo um católico fiel, como era antes de ser interrogado, aliás.

Beleza? Adiante, então. Vamos aos argumentos científicos.

1)O problema do mecanismo

O “azar” de Copérnico, digamos, foi formular sua hipótese heliocêntrica numa época pré-Newton, quando o gênio britânico da física ainda não havia nascido nem formulado sua teoria da gravitação. Do ponto de vista hipotético, era mais ou menos fácil postular porque os planetas e estrelas giravam em torno da Terra: eles seriam feitos de um tipo diferente e “sutil” de matéria, capaz de rodar rapidamente pelos céus.

No entanto, num mundo sem uma boa teoria da gravidade, era um bocado difícil postular que, na verdade, a Terra — esse troço pesadão e aparentemente imóvel em cima do qual todos nós vivemos — é que estava rodando em torno das “esferas celestiais”. Para o dinamarquês Tycho Brahe, o maior astrônomo da época, a Terra era um “corpo imenso e preguiçoso, inapto para o movimento” ao qual se estava atribuindo “um movimento tão rápido quando o das tochas etéreas” (lindo, não?).

2)A treta do tamanho das estrelas

A matemática por trás desse segundo ponto é um tanto complicadinha, mas basta dizer que, tirando a Terra do centro cósmico e transformando-a em simples planeta, Copérnico redefiniu para mais — aliás, para muito mais — o tamanho do Universo e, em especial, o das estrelas. Os astrônomos da época costumavam medir o diâmetro das estrelas que viam no céu (sabemos que hoje esse diâmetro ou largura é aparente, um truque da passagem da luz pelo olho ou por um telescópio, mas na época ninguém sabia). Levando em conta as distâncias postuladas por Copérnico e essa “largura estelar”, a conclusão inescapável é que o diâmetro real das estrelas seria da ordem… de centenas de vezes o diâmetro do Sol.

Tycho Brahe achava, com razão, que essa conta só podia estar errada. OK, hoje sabemos que algumas estrelas podem ter milhares de vezes o raio do Sol, mas a medida feita pelo sistema copernicano originou indicava que qualquer estrelinha vagabunda, mesmo as que (hoje sabemos) são relativamente pequenas, teriam esse tamanho absurdo.

Curiosamente, o argumento usado pelos copernicanos pra tentar convencer seus pares foi, em parte… religioso. Como escreveu um deles, Christoph Rothmann, para Brahe: “Deixe que a vastidão do Universo e os tamanhos das estrelas sejam tão grandes quanto você quiser — ainda assim parecerão ínfimos diante do Criador infinito. Faz sentido que, quanto maior o rei, tão maior será o palácio adequado à sua majestade. Então, qual o tamanho do palácio que lhe parece adequado a Deus?”.

Além dos grandes avanços teóricos trazidos por Newton (depois da morte de Galileu), o problema do tamanho aparente das estrelas só seria resolvido pra valer no século 19.

Acho que vale aqui (como em tantas outras áreas da vida) a boa e velha modéstia. A história (mesmo a história da ciência) não vem com retrovisor. Nem toda objeção ao que parece progresso é coisa de idiota ou fanático religioso, mesmo que se revele uma objeção equivocada, no fim das contas.

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